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As esganadas – Jô Soares

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Título: As esganadas
Autor: Jô Soares
Editora: Companhia das Letras

Cenário: Rio de Janeiro, final da década de trinta. Estado Novo, 1938. Situação: Uma série de assassinatos intriga os investigadores da Polícia do Distrito Federal em pleno governo de Getúlio Vargas.

Noticiado pela Rádio PRG-3 Tupi do Rio e oferecido pela Matricária Dutra (a melhor para as gengivas do seu bebê) e mais uma centena de outros produtos que contaminam o jornalismo com sua publicidade, o crime foi batizado  o caso das “esganadas”. Isso porque o denominador comum das vítimas está no fato de serem mulheres bem avantajadas. O eufemismo, na verdade, é desnecessário: são gordas mesmo. Seduzidas pelo seu maior pecado visível, as gordas são atraídas pela gula direto para a armadilha bolada por Caronte para saciar seu vício de matar e seu desejo de se vingar, repetidas vezes, daquela portuguesa balofa que era sua mãe. Para ele, nada mais apropriado do que tornar a gula das gordas a própria causa de sua morte, fazendo com que elas, literalmente, morressem esganadas pelo entupimento de doces e comidas portuguesas. Diferente de muitos livros que abordam o tema policial e investigativo, a trama não gira em torno de saber quem é responsável pelos crimes (tanto que ele é revelado logo no início do livro), mas sim os caminhos feitos pela Polícia para tentar chegar ao assassino.

“Dentro de cada mulher gorda
tem uma mulher magra suplicando para sair…
Fora de cada mulher gorda
tem uma mulher mais gorda ainda
suplicando para entrar!”

Em uma mistura de história geral do Brasil e ficção, Jô Soares consegue incorporar à trama a situação que vivia o Brasil na época do Estado Novo e incluir, mesmo que em segundo plano, personagens que de fato participaram da história do nosso país, como Filinto Müller (militar e político brasileiro) e até o próprio Getúlio Vargas, além de citar e envolver outras figuras conhecidas, como Osvaldo AranhaAssis ChateaubriandFernando PessoaAleister CrowleyAdolf Hitler etc. Mesmo em algumas passagens, é possível encontrar um pouco da história, da cultura e da arte que permeava o Brasil no final da década de trinta, como, por exemplo, uma rápida menção à Noel Rosa quando, ao interromper a música “Palpite Infeliz“, sucesso interpretado por Aracy de Almeida, a rádio noticia mais uma vítima do caso das esganadas. Há também um capítulo inteiro, e muito bem construído, que mostra a tensão da participação do Brasil na terceira copa do mundo de futebol, em 1938.

Com seus dedos ossudos, maquia-lhes delicadamente os belos rostos. Um batom rosa sutil e uma pincelada de rouge nas faces rechonchudas. Inventou uma palavra para definir a arte: necrocosmética. Ele observa, embevecido, sua obra e, trêmulo, sem se dar conta, deixa escapar um jato de esperma num orgasmo incontrolável.

As personagens que constroem a história são, em sua maioria, estereotipadas, apesar de possuírem sua própria complexidade e importância na construção da narrativa. Caronte é dono da funerária Estige, a maior da cidade (se não da América Latina), e um homem culto, amante da música, apesar dos seus problemas psicológicos adquiridos pela opressão sofrida pela mãe portuguesa e que desenvolveram sua tendência para o assassinato e um prazer até mesmo sexual na matança (o que também é comentado com a menção de Freud). Além disso, ele possui uma aparência bastante peculiar, para não dizer asquerosas, com seus cabelos ralos, unhas descamadas e dentes postiços. Mello Noronha, delegado encarregado do caso, é um homem ranzinza que tenta dividir seu tempo entre a obsessão com o caso das Esganadas e as óperas para as quais se sente forçado a ir para acompanhar sua linda mulher, Yolanda. Valdir Calixto, assistente do delegado, é um homem que, ao contrário do seu porte, se sente acuado em grande parte das investigações, possui um grande senso de organização e nunca quis mesmo ser parte da Polícia. Tobias Esteves é um ex-delegado português, com direito a barriga e bigode, amigo próximo do poeta Fernando Pessoa, que teve de sair da polícia após um caso frustrado sobre o suposto suicídio de  Aleister Crowley. Após sair da polícia, montou uma loja de doces portugueses e, juntando seus conhecimentos culinários com seu dom investigativo, se oferece para ajudar no caso. Possui um bom senso de humor e, em muitas situações, cita termos e ditados portugueses que confundem os falantes da língua brasileira (principalmente Calixto). Não posso me esquecer, também, da bela Diana, uma jornalista com faro para notícia e pulso firme, que gosta de exercer sua liberdade e possui uma atração por casos polêmicos que envolvem guerra e assassinato.

Apesar de acreditar, sim, que as personagens refletem um tipo bem específico de personagens, Jô Soares possui uma forma inteligente de falar através das entrelinhas. Muito da história citada ou mesmo da personalidade das personagens aparece em pequenas passagens e citações que, muitas vezes, podem passar despercebidas, assim como alguns momentos que possuem uma certa ironia no seu humor.

“- ‘Diz-me com quem andas, se não for eu, não vou.’
- Quê? – pergunta o delegado, sem entender.
- Nada, nada senhor doutor delegado, é um ditado lá da minha terra. Muito antigo, do tempo em que Deus usava fraldas.
- O senhor é evangélico? – pergunta o curioso Calixto.
- Não, sou agnóstico.
- Agnóstico? O que é agnóstico?
- É um ateu cagão – define Mello Noronha, à sua maneira.”

Às sua própria maneira, Jô Soares encontra uma maneira sutil, interessante e até mesmo divertida para ambientar sua história, as relações entre as personagens e tudo o mais que puder ser extraído das palavras e da ausência delas. O livro é permeado de ilustrações que ajudam a envolver o/a leitor/a na história contada. Apesar de já ter tido contato com alguns textos de Jô Soares, confesso que foi o primeiro romance que li e, mesmo com algumas críticas negativas que li por aí, é um livro que eu adorei e recomendo a qualquer momento e a qualquer pessoa (bom, talvez não qualquer pessoa, mas qualquer pessoa que tenha interesse nesse gênero).

Informações sobre a edição lida

Título: As Esganadas
Autor: Jô Soares
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1975-2
Número de páginas: 262
Publicada em: 2011

Sobre o autor

José Eugêni (Jô) Soares nasceu no Rio de Janeiro em 1938. Comediante, humorista, dramaturgo e romancista, é também um dos mais importantes entrevistadores da televisão brasileira. Dele, a Companhia das Letras já publicou os romances O Xangô de Baker Street, O homem que matou Getúlio Vargas e Assassinatos na Academia Brasileira de Letras.


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